Hoje vou publicar um pequeno conto escrito há algum tempo e que reflete sobre algumas angústias que permeiam minha alma. Boa leitura!
A viagem
O balanço da composição era monótono e a viagem transcorria em um ritmo bastante tranquilo e quase imutável. Pela janela do trem observava os pequenos municípios que iam e vinham como as pessoas – ondas tediosas em um mar morto. Eventualmente uma risada ou uma conversa chamava minha atenção e eu mergulhava no universo alheio.
Meus olhos semiabertos refletiam em minha alma a paisagem que lentamente era desenhada através das janelas. Eu era coagida a imaginar lugares e vidas para as ruas de cada cidade em acordes que harmonizavam com o ritmo do vagão caminhante dos trilhos. O sol tingia de laranja avermelhado a tarde que partia e cada vida que eu criava, cada história, ia ficando mais tristonha e fragmentada que antes.
Um carro que chegava na casa era a lembrança da infância que se perdera em ausência e distância de convivência. Nada mais melancólico que a presença ausente; estar e não estar de fato. Almas ocas convivendo em um espaço verticalizado em lacunas de intimidade e sentimentos. Infância, adolescência, sonhos em carros que trafegam pela existência... como o trem. Vão e vêm nas almas, nos corações, nas experiências. Uma árvore invade a paisagem, intrusa de nossas cidades e nossas concretas vivências urbanas.
Noite adentro o trem segue seu rumo e as cidades deixam suas lembranças insólitas em mim. Continuo criando novas vidas para cada coisa que vejo. Onde a rua da sobrevivência irá me levar? Vozes e risos, presentes natalinos em uma loja que avisto ao longe. Olhar semicerrado, lábios semiabertos para esboçar um suave sorriso amarelo. A criança será o adulto despedaçado de amanhã, memórias que trilham um caminho insondável pela alma humana. Uma mulher grávida preparando uma nova pessoa, esperanças e desejos depositados no futuro. Ano novo... vida nova?
O apito avisa que a viagem está alcançando o fim. Ao redor as pessoas se ajeitam para deixar o vagão, mas não suas vidas intrigantes e possivelmente enfadonhas. Labirinto de emoções mal resolvidas e escondidas entre abraços e sorrisos que permeiam as cidades. Piadas não mudam a realidade que nos assola e incomoda; a inquietação da ausência de nós mesmos, de nossas existências arrebanhadas por ideologias e discursos... parte o trem em chegadas e despedidas que trazem, por hora, algum alento para nossas almas cansadas e atormentadas.